ENTREVISTA – Tom e Mary Poppendieck sentam-se com Roberto Priolo e discutem o que faz as organizações de produtos terem sucesso hoje e qual é o futuro do desenvolvimento lean de software.
Entrevistados: Mary e Tom Poppendieck; autores, palestrantes, especialistas em desenvolvimento lean de software.
Roberto Priolo: Durante sua palestra no Lean IT Summit em Paris, você usou a palavra consciência para descrever um negócio de sucesso. Como se parece uma organização consciente?
Mary Poppendieck: Uma organização consciente é aquela que tem poucas falhas. As linhas aéreas são um ótimo exemplo disso, assim como qualquer fábrica da Toyota.
Especificamente, há cinco características que nos dizem se uma empresa é consciente, ou altamente confiável.
A primeira é a preocupação com as falhas. Vamos ficar com o exemplo da aviação por um momento: todo acidente ou quase acidente é investigado profundamente para que seja encontrada a causa raiz do problema, que, então, entra no checklist do piloto. Após algumas semanas do acidente, um checklist atualizado fica pronto, cujo propósito é garantir que um problema em particular não ocorra novamente.
A segunda característica é a relutância para simplificar. Os padrões nos ajudam a prevenir erros, mas pensar que a vida será perfeita assim que marcarmos todos os itens de um checklist é um erro. Isso é simples demais. Organizações conscientes não acreditam em explicações simplistas para as falhas e em soluções perfeitas.
Depois, temos a sensibilidade para operações. Organizações de alta confiabilidade têm processos padronizados muito bons para ajudar os colaboradores a lidar com as atividades rotineiras de forma eficiente e rápida e focar mais na solução de situações complexas.
Ainda assim, às vezes, as coisas dão errado, e, quando isso acontece, uma organização consciente foca em recuperar-se e aprender, o que chamamos de compromisso com a resiliência. Erros são (ou pelo menos devem ser) vistos como oportunidades de aprendizagem.
Por fim, a quinta característica: respeita à experiência. Organizações altamente confiáveis sempre sabem onde as melhores decisões podem ser tomadas – muitas vezes, na linha de frente.
RP: Na apresentação, você também usou a área militar como um exemplo para o qual as empresas devem olhar. Mas um exército não é visto, normalmente, como um ambiente extremamente hierárquico de comando e controle?
MP: Não, não quando você está em treinamento ou em guerra. Imagine dois exércitos se encontrando no campo de batalha. Um deles faz exatamente o que o general manda, enquanto o outro reage de forma diferente a cada situação em particular para alcançar o objetivo do general. O exército reativo vai vencer, sem dúvida.
Toda organização militar no mundo sabe disso, e treina seu pessoal para serem flexíveis e responsivos no campo. Você ficaria impressionado em saber quanta responsabilidade o pessoal da linha de frente tem no combate (algo que não podemos dizer do mundo corporativo). Pode parecer para quem é externo que as pessoas são mandadas, mas, se você tiver um ponto de vista de alguém de dentro, as coisas mudam muito.
Tom Poppendieck: O ex-oficial do exército Norte-Americano e agora coach do movimento ágil Dan Rawsthorne diz que o propósito da abordagem de comando e controle é separá-los, não unificá-los. Enquanto o intuito é expresso pelo comando, o controle é delegado ao nível mais baixo das unidades militares.
RP: Em sua opinião, o que está errado com o movimento de TI lean?
MP: Para começar, acho que TI é a palavra errada. É um conceito obsoleto que se refere a organizações de serviços, enquanto as empresas de hoje tendem a ser organizações de produtos que não têm TI, mas engenheiros de software que fazem o desenvolvimento de produtos.
O que também está faltando é uma percepção correta sobre valor. Em uma organização de produtos, o valor é fácil de enxergar: ou seu cliente gosta de seu produto ou não. Mas, se você está no negócio de TI, o valor real é mais difícil de ser identificado, porque você está muito longe do cliente.
Tentar usar o lean, que foca no valor, em um ambiente onde o foco está em reduzir custos (na verdade, muitas organizações de TI são centros de custo) não funciona.
Em empresas de serviços, dizemos às pessoas o que é importante, mas não o porquê, enquanto, em empresas de produtos, as pessoas entendem o impacto que estão criando.
TP: Empresas de produtos de software deveriam ter, e muitas vezes têm, um entendimento direto de quão valiosas elas são para as pessoas que usam seus softwares – como resultado, elas podem tomar decisões instruídas sobre como melhorar e crescer.
Na TI, você não sabe a diferença que suas escolhas acarretam. Não é incomum que as escolhas de projeto que você faz sejam fantasiosas com o objetivo de satisfazer sua curiosidade e desenvolver seu currículo, sem estarem ligadas ao valor organizacional.
RP: Você já viu o desenvolvimento lean de software por todo o mundo. Há lugares específicos nas quais esses princípios se enraízam com maior facilidade?
MP: Sim. Alguns países entendem esses conceitos um ou dois anos antes dos outros. O primeiro grupo a entendê-los é, normalmente, a Escandinávia – a cultura de gestão lá é muito baseada na ideia de ajudar as pessoas, não em dizê-las o que fazer.
Tipicamente, quando a primeira barreira (que, frequentemente, consiste na gestão atrapalhando e evitando que as equipes sejam autônomas) seja ultrapassada, desenvolvimentos consecutivos nas metodologias são enraizados mais rapidamente. O próprio movimento ágil demorou um pouco para ser difundido.
TP: Ao mesmo tempo, os atrasos estão diminuindo: graças às viagens internacionais e à comunicação, levando pensadores de diferentes países a entrarem em sincronia.
RP: O que você aprendeu com o lean startup?
MP: Startups são empresas de produtos que usam serviços contínuos, e é isso que permite que a aprendizagem validada aconteça. Seria besteira não fazer experimentos e descobrir o que funciona e o que não funciona, especialmente se você puder fazer isso sem gastar muito dinheiro!
RP: O que você acha do futuro do desenvolvimento de software?
MP: O software tem um papel cada vez maior em nossas vidas. Ter um bom software em muitos de nossos produtos será cada vez mais importante, e, portanto, a necessidade por engenheiros de software competentes será ainda mais crítica.
As empresas que descobrirem como melhor utilizar a tecnologia para solucionar nossos problemas serão as vencedoras. O Google já está dominando há muito tempo – solucionando muitos de nossos problemas – para podermos dizer que a forma como essas organizações inovadoras fazem as coisas é loucura. É uma loucura inteligente! A pergunta de verdade é “por que o resto do mundo não está fazendo igual?”.
TP: Não devemos nunca nos esquecer de que há pouquíssimas pessoas (que não sejam desenvolvedores de software) que queiram softwares! As pessoas precisam de soluções para seus problemas que melhorem a qualidade de suas vidas, e o software é a única ferramenta que essas soluções usarão para fornecer isso.
OS ENTREVISTADOS
Mary Poppendieck começou sua carreira como programador de controle de processos, tornou-se chefe do departamento de TI de uma fábrica de manufatura e, então, foi para o desenvolvimento de produtos. Ela considerou a ideia de aposentar-se em 1998, mas acabou tornando-se gerente de um projeto de software do governo, onde se deparou pela primeira vez com a palavra “cascata”. Quando Mary comparou sua experiência no desenvolvimento de software e produtos com as opiniões predominantes sobre como gerenciar projetos de software, ela decidiu que era chegada a hora para um novo paradigma. Escreveu o premiado livro “Lean Software Development: An Agile Toolkit” em 2003.
Tom Poppendieck tem vinte e cinco anos de experiência na área da computação, incluindo oito anos de trabalho com tecnologia de objetos. Suas habilidades de modelagem e mentoria são enraizadas em sua experiência como um professor de física. Seu trabalho começou em infraestrutura de TI, desenvolvimento de produtos e suporte para a manufatura e evoluiu para consultoria de atribuições de projeto nas áreas da saúde, logística, hipoteca bancária e serviços de viagem. Ele é um analista e arquiteto empresarial e mentor do processo ágil.
Baseando-se em seus aprendizados, eles escreveram seu segundo livro, “Implementing Lean Software Development: From Concept to Cash” em 2006, o terceiro, “Leading Lean Software Development: Results are Not the Point” em 2009 e o quarto, “The Lean Mindset: Ask the Right Questions” em 2013.
Fonte em português: Lean Institute Brasil.
Fonte em inglês: Planet Lean.